Добавил:
Upload Опубликованный материал нарушает ваши авторские права? Сообщите нам.
Вуз: Предмет: Файл:
курсовая.doc
Скачиваний:
4
Добавлен:
14.11.2018
Размер:
313.86 Кб
Скачать

Оригинал перевода

O pior eram as noites. Tao frigidas, tao molha-das, tao traicoeiras, que para as suportarem se cncostavam os tres uns aos outros e assim, du­rante horas, dormitavam, ate que acordavam, um por um, cansados, como depot's de uma longa e pe-nosa Jornada, com os ossos a doer, como os dos ve-lhos, como pisados a martclo. Ate as chamas dos fosforos, quando fumavam, logo se extinguiam na-quela atmosfera saturada de humidade.

De dia ainda conversavam. Nao se viam, no escuro, mas pelo volume, pela sonoridade, pelas inflexoes de cada palavra descortinavam uns nos outrcs, melhor ainda do que as claras, todas as reaccoes, das mais dissimuladas as mais impudicas: о medo, о desanimo, a troga, a piedade, a raiva, a ansia de vimjanca...

Para conseguirem um migalho de dia, de dia real, com Iuz, dentro do tempo dois homens. O tempo la de fora, diferente daquela catacumba maldita, tinham de subir, quase dobrados. Para nao esfurancarem a cabeca nas puas da abobada baixa, os dez degraus de pedra da escada que dava acesso a masmorra. E iam colar os rostos a porta carunchenta, a primeira porta, grossa e velha, a de madeira, com frestas naturais, estreitos inters-ticios que os seculos, caridosamente, nela haviam rasgado. A outra, a segunda, de ferro, e trancada, que abria para о exterior, essa tinha multiplos buracos, minusculos, uma renda de oriffcios, mas apenas tenuamcnte a vislumbravam, inacessivel. E aquele espaco tenebroso de meio metro, entre as duas portas, parecia-lhes ja um paraiso, vagamente aquecido, ocelado de sol.

E la fora a America existia. A poucas milhas daquele ilheu condenado, langucsciam as praias sonurnas do pais crioulo, do pais azul, que todos eles amavam, nao longe de suas cidades instaveis de arranha-ceus e de choupanas.

Nas noites de muito vento, raramente, uma quarta voz vinha juntar-se as deles: era о estru-gido do mar, livre e forte, que acoitava a ilha, a ilha infame.

Entao acontecia que Ramon, exasperado, balan-cado pelo rolamento daqueles mugidos longm-quos, niilistas, justiceiros, se deixava enlear numa negra, numa colerica desesperanca с sentia nasccr--lhe, elevar-se-lhe das entranhas, uma suplica de fogo: «Vem, mar. leva, espatifa isto tudo, rebenta com isto. arrasa. dcvora tudo, submerge-nos a to-dos.»

О ruido. permanente, espacado, das gotas de agua, caindo da abobada, no escuro, esmagava-se entre eles. ritmadamente.

Cristobal tinha as solas dos sapatos rotas, as calcas esfarrapadas: por varios sitios assim se lhe entranhava no corpo о lodo do solo, que ja nao о sobressaltava, mas cuja insensivel frialdade ofi-dica о ia alagando, minando, de dia para dia, e о fazia espirrar constantemente, e assoar-se ao lenco fetido, cheio de crostas.

__Se, ao menos, tivcsse a certeza de sair daqui

um dia para contar tudo isto!...—ansiava Cris­tobal.

A treva absorvia-os, escondia-os uns dos outros, aquela tinta espessa do calabougo, mas Ramon adivinhava-lhe nos olhos um resto de esperanca, de uma estranha e virulenta esperanca, como um sumo dos rancores madurados, de todas as dores refervidas no corpo e na alma.

Pepe protestou, ironico, de um esconso da cela:

— Nao tenhas ilusoes! Ninguem ja faz caso disto... Sao banalidades no nosso seculo... E, vendo bem, talvez em todos os tempos...

Pepe devia sorrir. Pelo torn da voz, Ramon ima-ginava-o a sorrir, em pose, mesmo na escuridade. Dantes, ele sori'ia sempre que falava, ou quase sempre. E sem esforco, sem nenhum esforco. Era a vida que ele sorria, a todos os interlocutores — nao sabia recusar о sorriso a ninguem—, como naquele dia, ainda proximo e ja tao distante, em que pegara da pena sem hesitar, e juntara о seu nome recem-safdo do anonimato, о seu nome jovem e ousado, aquela coluna que desafiava о perigo e erguia a face, ante as ignoradas represa-lias. Tivcra entao uma frase inesquecivel, que a todos os fizera abanar a cabeca, divertidos: «Ja fui muitas coisas na vida: estudante, boxeur ama-dor, figurante de cinema, aprendiz de escritor, funcionario publico; mas ё a primeira vez que tomo uma atitude.»

Que «flautista»! Aquele mesmo gesto decisivo que todos eles haviam pensado e repensado, segu- ros dos dissabores que lhes ia por certo acarretar, a tal ponto comovidos que duramente se abraça­vam e estreitavam as mãos, com lágrimas suspen­sas no olhar, fora para ele um jogo, mais uma prova excitante na sua aprendizagem da vida.

Cristóbal o avisara, naquele seu modo natural­mente didáctico, convicto, grave e positivo, de que Pepe sempre mofara um pouco: «Olha que desta vez a experiência que vais fazer é mais sé­ria. £ a experiência da dignidade. E a digni­dade às vezes tem um preço muito caro: o sofri­mento.»

Mas não havia coisa alguma que pudesse alar­má-lo. Nem ameaças, nem provações, nenhum es­pectro do futuro. Mesmo ali, aguentara tudo a sorrir. Estivera incomunicável um mês inteiro, sem nada que ler, sem papel, sem lápis, para escrever ou para desenhar. Voltara, a sorrir, semi-calvo (fazia impressão como o cabelo pudera cair* -lhe assim, tão de repente, no espaço de um mês), mas com a mesma boca arqueada e teatral, a mesma avidez tumultuosa nas mãos vibráteis de artista.

O que lhe faltava era arcaboiço. Tossia. Come­çara a tossir logo dois dias depois de ali os encer­rarem, na poterna. E ainda aquele dia era só o décimo terceiro. Um número aziago. Que iria acontecer? Que mais poderia acontecer?

Seria difícil que aquele odor pestilento do cala­bouço piorasse ainda. Todos eles, todos os três, já cheiravam a imundície, pisavam sem querer os pró­prios dejectos, praguejando, pisavam-nos esqueci­dos do local onde os haviam deixado.

Alguns dias mais naquela cloaca e largariam as

rédeas do espírito, toda a condução da vontade; soçobrariam numa bestialidade vegetativa. Con­tra isso trabalhavam os três e, unidos por um tácito compromisso, de quando em quando, mesmo a custo, aplicadamente, repelindo a onda glutinosa da inércia, que os enovelava com as coi­sas esterquilíneas e mortas, o torpor dos corpos, vizinho da abdicação — faziam apelo à palavra, como tónico moral. E Pepe conseguia vencer aquela atmosfera excrementícia e dolorosa, a tal ponto que chegava ainda, como num café, numa roda de amigos, a perorar, ingenuamente enfa­tuado (quase todos os seus paradoxos camuflavam uma ingénita candura), sobre estética e sobre tea­tro. Atropeladamente, desordenadamente, lá vi­nham à baila o «Man and Supcrman», de Bernard Shaw, o seu «grand dada», e as peças de Arthur Miller, «sublimes» e proibidas, os últimos qua­dros de Picasso, de Kandinsky e de Rivera, que ele só conhecia através de reproduções, mas que o exaltavam. E punha nesses solilóquios de resistên­cia, que lhe redobravam a tosse, toda a sua ânsia de modernidade, de arejamento, de grandes em­preendimentos jovens, «formidáveis»... Mas «eles» não consentiriam nunca — desolava-se, olvidando a sua compostura irónica—, «eles» queriam amor­daçar a beleza, a verdade, a incómoda verdade impudente e cortante, tudo o que pudesse atentar contra o seu podre sossego.

Também Ramón às vezes falava, com mais difi­culdade, porque precisava de ver os seus ouvintes, de lhes espiar na cara o grau de atenção. Sempre fora adverso a discursos e a auditórios numerosos. Ali, naquela víscida e opaca escureza, onde se não sabia que rumo as palavras levavam, se ele suspei­tava de que os outros dois se estavam maçando ou recaíam em seus mórbidos marasmos, embotava--se-lhe a voz c amortalhava de qualquer forma o assunto. A princípio, aliás, e mesmo no meio das conversas, por via de regra, achava-se desinte­ressante. Tentava, por vezes, para dizer alguma coisa que dali os evadisse, tornar-lhes acessíveis ideias genéricas da medicina nuclear-, que, a ele, o atraía; sugeria hipotéticas maravilhas futuras no combate da atomística contra a doença, e explica-va-lhcs que novos meios de observação iam per­mitindo perscrutar nos órgãos humanos os ínfimos grânulos de matéria. Depois, quando as réplicas frouxas e espaçadas dos companheiros se extin­guiam, não lhe era afinal difícil continuar, mercê do impulso adquirido, e falava então de música, dos grandes concertos que ouvira lá por fora, no Rio, em Buenos Aires, em Nova Iorque, e dos seus discos, dos discos que pouco a pouco juntara em sua casa e que costumava ouvir à noite, a sós, ao menos uma vez por semana: «Les filies aux cheveux de lin», de Debussy, «Les poissons d'or»... Acontecia-lhe então ouvi-los dentro de si, muito ao longe, e já não lhe apetecia calar-se.

Era um esforço bem acerado, intermitente, aquele de não adormecerem, de não amolecerem por completo, na homeopatia da dor, na volúpia amarga e consentida das dores físicas, na aceitação da náusea, de uma desesperança que os afogaria. Antes o sonho, antes o rancor, que eram reacções positivas. E conseguiam, de onde a onde, foragir-se naqueles colóquios, naquelas reminiscências, desertando a sórdida realidade presente.

Cristóbal era agora, apesar do seu feitio entre eles reconhecidamente calmo, positivo e didáctico, o mais obcecado pela injustiça do seu destino, pela implacabilidade dos seus verdugos, ansioso de a proclamar aos quatro ventos. Era agora o mais dèbilmente enraivecido e confundido e des­controlado, o mais sedento, o mais necessitado de ar, de conforto, de regresso. Tinha momentos, em­bora raros, vizinhos da histeria: «Não duro muito, vocês vão ver...- Ah! Quando me deixarão eles ir em paz?!... Tudo isto me parece um pesa­delo!» Fora ele justamente, no entanto, aquele dos três que melhor soubera ou julgara saber o que queria, ele o reformador, o profeta, homem de boa vontade, amante um pouco livresco da hu­manidade, o único que se julgava na posse de algumas certezas. Autodidacta, tendo-se guindado, numa valente e monótona ascensão de anos labo­riosos, até chefe de uma tipografia, tirava do seu primarismo voluntarioso, da sua honestidade de-sambíciosa, da sua cultura unilateral e sumária, uma convicção absoluta de pensar sempre bem, ele e não os outros.

A verdade — reflectia Ramón, quando o ouvia agora desmoralizar-se e excitar-se — é que Cristó­bal era também dos três o mais dependente, o único casado.

E amiúde Cristóbal precisava de lhes falar da mulher e da filha. Da mulher que era tão del­gada, tão loira, e que o fora mais ainda, de um loiro quase branco, dez anos antes, quando ha­viam começado a namorar-se... Ainda ele tinha então os dentes todos, grandes, tortos, mas intei­ros, menos o último do siso, que nunca lhe nascera... E «eles», os «cães de fila», havíam-lhos partido, da primeira vez... logo os da frente, os mais necessários... E que podia ele fazer? Nada! Sofrer e calar.

Engolir em silêncio, crispar-se, fechar-se, acumu­lar, ir sempre acumulando, e responder-lhes com o silêncio, com o mais absoluto silêncio, o mais adverso silêncio — silêncio de impotência, mas tam­bém silêncio de desprezo. Ahí Parecia-lhe que já não via a filha havia uma eternidade. Se a conhe­cessem... Era uma menina tão meiga! Mas capri­chosa. Também... aos seis anos, que tacto havia ela de ter?... Às vezes achava-lhe graça: ele chama-va-lhe «boneca» e ela respondia ((Boneco és tu!».

Cristóbal sorria então, por certo devia sorrir, dolorosamente, com toda a sua boca escura e des­dentada, com os seus grossos olhos sobrancelhu-dos e nostálgicos. E Pcpe que nada dizia, Pepe que apenas tossia, dissimuladamente, evitando in­terrompê-lo?! Ramón sentia então um aperto no peito, os lábios quase trémulos e cheios de pie­dade, de uma perigosa e deslocada piedade. Ali não se podia ser compassivo, a lamechice só servia para os amolecer, rendia-lhes os nervos à fraqueza. Todas as energias se desfibravam.

Cristóbal, solitariamente, continuava:

— Com a minha mulher é que foi o diabo... para a convencer!... Não dou um passo sem a consultar... isto é, sem a pôr ao corrente. E ela põe o bem-estar da família acima de tudo. Cen-surou-me! No fundo, porque gosta de mim, e não queria perder-me. Sim, claro que gosta de mim, mas não me entende, nunca pôde entender, creio que nunca há-de entender, infelizmente, que possa haver para mim coisas mais importantes, ainda mais importantes, do que o próprio pão que lhes dou a comer, a ela e à miúda...

Quando riscavam fósforos, para fumar, quase sempre viam as horas, furtivamente, escondendo--se uns dos outros. Todos eles sabiam quanto era inútil olharem os relógios naquele cárcere onde a razão os aconselhava a esquecer o tempo. Que só pela fome o medissem! Mas viam as horas mesmo assim:, não se haviam ainda despegado da­quele tique, em que uma recalcada, uma absurda esperança, sem contornos lógicos, flutuava, uma vigiada e dissolvida, mas persistente, uivante, ur­gência de liberdade...

— Ramón — perguntou Pepe, de repente—, em que é que estás a pensar?

Ramón sabia que não podia dizer-lhe a ver­dade. Mesmo que cedo perdesse aqueles restos ainda ondulados da sua já tão rala e húmida, con­frangedora, cabeleira desplumada, Pcpe era afi­nal, e permaneceria ainda por muito tempo, um débil rapazinho, paradoxalmente, incongruente­mente, forte e frágil ao mesmo tempo, sujeito a acesos ímpetos de oferecimento e sacrifício viril ou a quebrantos fulminantes. Frágil, frágil como um adolescente, que seria dele se ficasse, de súbito, privado da solidez, da validade, do seu «caso he­róico», daquele entusiasmo imenso que vivera e que ainda prolongava e vivia, apesar dos seus re­moques auto-irónicos, das poses de descrença, amostras de «classe», como histriònicamente as in­titulava e que adrede interpolava nesse seu papel de eleição, forjando uma sobranceira elegância, decorativa e ideal?.' Se ele, Ramón, lhe dissesse que naquele mesmo momento precisamente a si próprio confessava que não sabia bem, no íntimo do seu íntimo, porque estava ali nem se ali estava certo—isso o abateria e o perturbaria mais do que um cento de chibatadas. Por isso lhe respondeu

apenas, serenamente:

— Em nada. Não estava pensando em nada de

especial. E tu?

— Eu? Nem imaginas. Estava-me lembrando dum cão. Coisas exóticas que nos passam pela cabeça! Há um lago, no parque, ao pé da minha casa, isto é, da casa dos meus pais (esta minha mania das grandezas!), e todas as tardes a nossa vizinha do rés-do-chão, que é uma solteirona bai­xinha e muito magra, que está sempre de acordo com toda a gente... todas as tardes ela vai até à beira do laço e deita uma mão-cheia de miolo de pão para o meio da água estagnada. Creio que é para ver aparecer os peixes, que pulam e brigam uns com os outros, fazendo círculos cm volta das migalhas, e lá as arrastam e devoram-nas. Uma distracção como outra qualquer! Pobre senhora: adoràvelmente piegas e zoófila! Mas há também um cão vadio daquelas redondezas que lhe fareja a chegada — já deve até saber a hora a que ela vem — e aparece fatalmente; fica muito quieto, humilde, a uma respeitadora distância, de ore­lhas afitadas, os olhos admirados e suplicantes. Ela acaba por lhe atirar as côdeas. Eu vou, às vezes, por ali: costumo sentar-me num banco, a ler algum luto. Por fim — queres crer?—, deu--me para meter também no bolso uns bocados de pão ou de bolo, por causa do bicho. E estava pen­sando que, em saindo daqui, se sair, vou gostar

de o ver, o sacristã do rafeiro... Tem umas orelhas tão giras... e uns olhos tão tristes! Um cão vadio,

como eu...

Foi no fim dessa tarde sem luz, igual às ante­riores, ao cabo do décimo terceiro dia, que Cris-tóbal e Pepe, quase simultaneamente, cederam, numa brusca queda vertical, como se em ambos a vontade já minada e gasta desabasse enfim, como se nada mais lhes restasse do que despenharem-se nos abismos vasculares e lenitivos da desagrega­ção, da doença aceite...

— É o meu número favorito, o treze — dissera Pepe pouco antes, num pressentimento—, a vida tem destes caprichos, valha-nos isso: acerta os de­sastres com a lenda...

Viera-lhe aos lábios essa «boutade» logo a se­guir àquele gosto estranho e novo que lhe inun­dara a boca, num gosto fluido, quente, adocicado, desconhecido dos seus sentidos. Tossira levemen­te, como de costume, e aquilo acontecera. Teve então uma espécie de iluminação: a sua fraqueira, os suores nocturnos, aquela tosse seca a chagá-lo,

tudo se explicava.

— Dia treze! A providência, como eles lhe cha­mam, às vezes faz bem o seu ofício...

— Não sei que raio é que tenho — queixou-se Cristóbal, quase em seguida—, parece-me que é

febre...

Ramón aproximou-se dele, procurou-lhe o pul­so. Era fantástico e terrível, absurdo e apavorante, como assim, inesperadamente, sobre eles descia, monstro de múltiplos tentáculos, a conspiração da fatalidade e derrocava todos os alicerces daquele vacilante edifício humano e moral que eles os três constituíam, amparando-se ainda uns aos ou­tros.

— Bate que nem um cavalo... que nem um ca­valo inteiro, não é? — interrogou Cristóbal, quase com fúria.

E não se enganava.

— Porque não te queixaste há mais tempo? — protestou Ramón.

— Mariquices, para quê? Só há bocado, de resto, é que comecei a sentir arrepios de frio e uma pontada persistente, aqui, do lado direito. Desta dispneia de m..., nem fiz caso...

Ramón obrigou-o a arregaçar o camisolão de ma­lha e encostou-lhc a orelha, concentradamente, ao dorso, sobre a camisa fedorenta. Pareceu-lhe ouvir um sopro na base do pulmão, respiração de mau agouro, com uma tonalidade superada. Mandou-o pronunciar o clássico trinta e três (Cristóbal ex­peliu, com as palavras, um riso enervado, entre o escárnio e a ansiedade) e, apoiando o bordo in­terno da mão na zona suspeita de condensação, reconheceu ali nitidamente uma vibração mais in­tensa. Havia fortes presunções de pneumonia — tinha de admitir Ramón. Mas não se pronunciou. O susto reservava-o para si.

Durante o resto do dia, revezaram-se ele e Pepe para evitar ao doente o contacto do corpo com o solo encharcado. Mas como? Mesmo que o atra­vessassem sobre os joelhos deles, como faziam, sustendo-lhe a cabeça, resguardando-lhe os pés, fi­cava sempre um ponto qualquer do corpo dele a roçar-se pela humidade, a empoçar-se naquele visco assassino da fossa,

Pepe também tossia mais do que de costume,

cada vez mais. Mas não se lamentava. Deixara-se de frases sibilinas. Caíra num pastoso marasmo, triste e conformado. Tossiam ambos, ele e Cris­tóbal. Seria apenas sugestão? — inquietava-se Ra­món.

Quando o carcereiro, à hora usual da noite lá de fora, veio trazer-lhes o rancho, Ramón, forçan-do-se, por uma vez, a uma relutante cordura, logo despida quando a voz lhe cresceu, desvairada, en­tre a acusação e a súplica (todos os meios serviam para salvar o amigo), expôs-lhe, definitivo, a situa­ção. Que era um caso sem saída, se o abandonas­sem ali. Fizessem o favor de olhar para ele. Seria um crime, uma morte certa!... Cristóbal, agora desperto, apertava-lhe a mão, moderando-o. Pepe fazia coro com Ramón.

O homem escutou-os, calado, dando breves e he­sitantes estalidos com a língua, sem uma pro­messa, e fechou-os, trancou-os na masmorra, como todas as noites lhe cumpria fazer, mas voltou, meia hora depois, acompanhado por dois homens com uma maca e com mais luz. Devia ter recebido instruções naquele sentido. Um dos visitantes era com certeza um enfermeiro, a avaliar pelo modo atento e perscrutador como observava Cristóbal, que perdera todo o vigor e cabeceava, embora o olhar turvo, agónico, se lhe recusasse, naquele transe, ao esmagamento do febrão.

Quando Pepe se levantou, para os ajudar a colo­carem Cristóbal na maca, não fossem molestá-lo com rudeza, vacilou, ofuscado pela chama pró­xima do candeeiro, e teve de se escorar com a pa­rede. Tossia, aflito, e, num reflexo pronto, levou o lenço à boca. Notou-se então que aquele qua- drado execrando de pano inominàvelmente sujo estava constelado de pequenas manchas ligeira­mente rosadas, de um pálido sangue velho e seco. Os olhos brilhantes, o rosto esquálido, que a luz móbil do candeeiro revelava, não deixavam dúvi­das a ninguém sobre o seu estado de saúde.

— Leva-se este também, até ver?...—perguntou o suposto enfermeiro, perplexo.

— Não, eu fico — declarou Pepe, cravando o olhar, orgulhoso e ainda risonho, em Ramón, que abanou a cabeça, negativamente, devagar, com fir­meza. Porém, logo a seguir, Pepe de novo se agar­rou à parede lamacenta e por ela abaixo principiou a escorregar, como uma coisa mole. A emoção que-brava-o, desfazia-o.

Os guardas entreolharam-se, indecisos.

— Dêem-lhe uma injecção de coramina, antes de mais. Façam-lhe depois uma radiografia, se for possível — disse Ramón. Com certo espanto veri­ficou que acabava de falar num tem de comando e conseguira ímpor-se. Era naquele momento en­tre eles o médico, e até os guardas, confundidos, o aceitavam como tal.

Depois calou-se. Competia-lhe agora calar-se, não pedir nada para si, nada, absolutamente nada. Voltar ao seu mutismo contundente. Ele, ao me­nos, que ainda podia resistir.

— Ramón!—disse Pepe, lastimoso. — Eu não quero...

— Vai, cala-te — intimou Ramón. — Cala-te. Abraçou-o, quase com rudeza, contraindo os ma­xilares, e empurrou-o para os guardas.

Quatro, cinco horas apenas (quantos sucessos no círculo fechado daquela tarde sinistra!), e vira-os ceder à doença, caírem ambos de repente, empol­gados pelo absurdo destino que lhos roubava. E quem sabia se com eles, com a presença deles, não se iam também os sobejos da sua força!

Agora era o silêncio, o silêncio total, havia já sete dias. Desde que ficara só. Às vezes, tanto se lhe haviam embotado as faculdades sensórias na opacidade daquela inércia — menos o olfacto, cruelmente activo—, receava que os seus olhos, habituados a verem pouco menos do que nada, se houvessem tornado globos mortos e gelados. Nem a laminação perdida de alguma gota de água interrompia aquele podre negrume. Súbito, o pa­vor irracional da cegueira estremecia-o todo, e então, sôfrego de luz, da certeza de que os seus olhos ainda viam, galgava a escada de pedra, num desespero, corria à porta carunchosa, a banhar de esperança — de que esperança?! — as pupilas em­baciadas. Via! Ainda enxergava os pobres escarros de sol, amarelos, para lá da porta, sobre as pare­des encardidas de musgo, naquele metro qua­drado de limbo.

Deixava-se então cair ali mesmo, sobre os de­graus, e não se apartava tão cedo da sua pobre fonte de luz, quase seca e que a noite, agora sem lua, prestes viria estancar. Era pior, mil vezes pior, a escuridão, sem companhia. Quanto tempo resistiria?

Quando o carcereiro lhe trazia o rancho, não fazia perguntas. Uma insidiosa voz interior lhe sussurrava que a sua dignidade, a sua pobre e vafc dosa dignidade, estava no fim, mesmo no fim, usada até aos fios da vontade, até às últimas fibras do orgulho; e ele enrodilhava-se como um far­rapo, queixoso, mas só por dentro, numa procura amorfa de aniquilamento, na quase aceitação da sua bem-vinda insignificância. É não interrogava nunca o guarda. Poderia perguntar-lhe, é certo — que importância teria isso?—, se sabia alguma coisa, se tencionavam mantê-lo ali por muito tempo.

Mas o que contava, o que verdadeiramente con­tava, sabia-o ele secretamente, para lá dos rumo­res do instinto e das suas vozes desfalecidas: «sa­bia» que podia ainda aguentar. E, depois, talvez até se habituasse. Depois... Até ao fim. Talvez lhe custasse cada dia menos. Com a perda de energias, de calorias, diminuía também a capaci­dade de sofrimento, de esperança, a insurreição animal do corpo.

Não, nem uma palavra imploraria ao carce­reiro, enquanto tivesse força íntima para se calar, força ou desinteresse, que era também uma força, embora negativa. Não se demitiria. Ainda não. Respeitaria ainda o fantasma de si próprio.

Comia a massa e as feijocas nauseabundas, as sopas de pão, que se lhe enrolavam na beca azeda e pastosa. Também no espírito remoía o seu pas­sado com aquela mesma lentidão doentia e fas-tienta. Imagens de parentes, de amigos, de mu­lheres, do consultório, dos doentes, da sua branca cidade natal, cidade do Sul, desfilavam-lhe pela lembrança, horas amenas, horas excitantes e atro­peladas, horas antigas de incerteza e de amargura,

que ressumbravam agora, mesmo essas, um suco rosado de felicidade, da evaporada felicidade...

Desejos, já quase os não tinha, adormecido o sexo naquele ascético isolamento. Só de manhã, por vezes, acordava ainda com uma erecção mecâ­nica, fisiológica, que logo se lhe extinguia no dolo­roso despertar dos músculos.

Algumas vezes, casualmente, passava as mãos pelo rosto e encontrava a testa alta, ardente, a barba rija e mal semeada, a pele sebosa, os con­tornos do queixo emagrecidos, covas, rugas que dantes não lhe maculavam o semblante regular. Como devia ter mudado! Entrara para ali com quarenta anos tão disfarçados que os amigos, por graça, o comparavam a Dorian Gray, perguntan-do-lhe onde guardava o retrato que em vez dele estaria a envelhecer. Agora... E em menos de três meses!... Os dois primeiros vividos em comum com outros presos, meses ásperos mas suportáveis, ainda cheios de saudades e de uma pressa louca de se ir embora. Aqueles últimos vinte dias é que o haviam acabado, aquelas três semanas de pesa­delo depois do «castigo», por ter incitado — disse-ra-se — os companheiros à rebeldia.

Faltavam-lhe dois anos, menos os três meses já cumpridos. Chegaria alguma vez a sair dali? Pare-cia-lhe improvável- Não tinha condições físicas para tanto, se o «castigo» ainda durasse muito. Sempre se aguentara, é certo, mais que os outros... Mas conhecia, cemo médico, os seus pontos fracos: a tensão baixa, o coração...

E, afinal, porque se metera naquela «alhada»? Porquê?

Quem lucrava com o gesto dele?! Com aquele gesto de suicida...

Ninguém. Sim, ninguém, absolutamente nin­guém.

De resto, em momentos de exame de cons­ciência, quantas vezes não pensara, desde que ali estava a apodrecer, que tudo aquilo fora e seria absurdo, todos os esforços como os dele, como os dos outros, para esbofetear a tirania, para denun­ciar a prepotência! Se a tirania, o autoritarismo, a delação, a concussão eram talvez males humanos, males fatais no seio dos Estados, de todos os Estados e cidades e aldeias, e até das famílias...

Que ele nem fora sequer útil, construtivo, prá­tico, sereno, objectivo; não sabia, nem podia talvez ser nada disso...

Dera um exemplo de pura coragem, de insub-missáo, que o deveria lavar de todos os erros, pe­quenos ou grandes, públicos ou privados, que até então houvesse cometido; e fizera-o num meio encharcado de medo, atolado numa torpe covar­dia. Talvez...

Mas fizera-o por si, ou pelos outros? Não, não fora só por si. Movera-o também, em certa medida, a repugnância pelos cultos idolátricos, pelos dita­dores, pela bestificação dos extremismos, e o seu horror à miséria, às humilhantes desigualdades, às servidões consagradas, indiscutidas e indiscutí­veis, aos venenosos tabus.

Trouxera-o ali, nem ele sabia bem como, um certo amor pueril pelos iditosos, que às vezes o fazia parar, transido de lástima profunda, ao pé das mendigas grávidas, ao pé dos cegos que nin­guém via, ao pé dos velhos e dos aleijados, com a boca cheia de uma ânsia de perdão, perdão da sua existência mais feliz, e as mãos a fecharem-se-lhe como armas, num apelo inconsciente de.vindicta. Trouxera-o ali o nojo dos poderosos, dos insen­síveis e confortáveis poderosos, cujos olhos ma­duros escarneciam sensatamente quantos descon-chavos reformadores lhes incomodassem o dourado sossego.

No entanto, ele sabia (porque mentir a si pró­prio?) que não acreditava cabalmente em ne­nhuma forma de salvação da humanidade, em ne­nhuma receita política, em nenhuma mística capaz de transformar o mundo. Nem intelectual, nem visceralmente acreditava. Havia nele também um jacente fundo céptico, desde muito moço, misto de experiência e de adivinhação histórica, que lhe segredava ao ouvido da razão que as regalias, a intolerância, os métodos de escravização se reno­variam sempre, fatalmente... Mas no meio disso, de um lado e de outro de um mundo dividido, cruelmente antagónico, erguiam-se os puros, os descontentes, os revoltados — e de longe, sem o saberem, mesmo que se malquisessem, ignoran-do-se, eram eles que se davam as mãos... as mãos feridas, insultadas, amesquinhadas, voltadas para o futuro, para a promessa maravilhosa dos impossí­veis. E talvez essa cobiça dos impossíveis fosse uma fonte de esperança perpétua e necessária...

O último pacote de cigarros findara. Ramón sofria agora mais. A ânsia do tabaco agitava-lhe os lábios dementados. Podia talvez pedir um cigarro ao carcereiro, quando ele lhe trouxesse a ração. Mas seria pactuar, seria quase render-se. Não.

Tinha de ser homem, já agora, até ao cabo das suas provações.

Uma alternativa, uma hipótese o apavorava: a de que o sujeitassem à tortura, não tanto pelo medo da dor física, mas pelo medo de ter medo, de que todo o orgulho lhe falecesse, que toda a coragem o abandonasse e o deixasse cair de rastos, vencido, rogando compaixão para o seu corpo, para o seu mísero corpo. Tal hipótese o afligia mais do que uma ameaça de morte iminente, mais do que a antevisão de uma doença em total aban­dono. A luta era outra coisa. Disso sabia-se ele capaz: da luta ao sol. Capaz de desafiar o mundo inteiro para um instante de clara luta. Sempre confiara na sua espectacular coragem meridional, impulsiva e súbita, pronta aos mais flagrantes rasgos de valor. Mas a resistência ao vexame, à dor continuada, à agonia lenta, sem defesa, essa qualidade mais rara e mais preciosa de heroísmo, ignorava se a possuía. Duvidava, desconfiava de si... Suspeitava, um secreto instinto o advertia de que já não vinha longe o momento em que teria de provar a si próprio, a si próprio e a mais nin­guém, se era realmente homem para conservar a dignidade até às extremas resistências da carne — e esse limite obrigava-se desde já a fixá-lo na fron­teira da morte.

No dia em que o levaram à presença do capitão, a luz quase o cegou. Tirado abruptamente do cár­cere para aquele vasto incêndio de sol, Ramón, teve primeiro de fechar os olhos e só depois, pes­tanejando, os abriu, furtivos, para, a pouco e pouco,

se aclimatar à intensa verberação. Nunca o mar se lhe mostrara assim, tão larga e lisamente incan­descente, combinando com o céu rútilo aquela loucura branca que tremia e dançava na atmosfera ofuscante e afogueava os próprios seixos, a areia fina, manchada aqui e além por montículos de excrementos, nos recessos da penedia. Quando a vista, por fim, se lhe afez ao dia, começou então a respirar, a beber o sol, com um infinito júbilo. Caminhava, trôpego, entre os guardas. De uma vez que encalhou' num deles, o homem empurrou-o sem contemplações.

Naquela seara de rochas, à beira-mar, que pa­recia o resultado de um dilúvio de pedra, uma graça fresca, uma ternura toda familiar e tran­quila, condensavam-se nas campainhas azuis que floriam a alva casamata caiada que os guardas ha­bitavam.

O capitão esperava-o, detrás da secretária. Era a primeira vez que se encontravam. Teria talvez quarenta e cinco anos. Ou menos. A cabeça oblonga e amarela, os olhos písceos, vidrados, sa­lientes, o pêlo indefinido e ralo, uma boca amarga de colítico. Mas aquela cabeça ingrata, mórbida e tristonha, de pequeno oficial de repartição, assen­tava desproporcionadamente nuns ombros largos e nodosos de colosso. E quando o capitão se erguia, por detrás da secretária, verificava-se que, apesar das suas faces murchas e magras, era altíssimo e quase obeso.

Mandou-o sentar-se, defronte dele, com um gesto convidativo. Depois começou a ler, por alto, di- ív»u.C5

versos papeis, e a folheá-los, à procura, dir-se-ia, de alguma nota essencial para iniciar o diálogo. Seria que todos aqueles escritos lhe respeitavam? — admirou-se Ramón. Lá estava — não havia en­gano possível — o seu retrato, ao alto de uma folha, pregado com um grampo.

O capitão levantou um instante o olhar dos do­cumentos, concentradamente, como se outra coisa lhe houvesse esquecido, e, com um vago simulacro de sorriso, estendeu a cigarreira a Ramón, que a repeliu num gesto de negação. Então o sorriso do homem abriu-se mesmo, ambíguo, mas inteligível, um sorriso que flutuava entre a chacota e a mag­nanimidade, a volúpia do poder. Sorriam-lhe, con­tentes, todos os dentes esverdeados, os lábios mor­tiços:

— Fume, senhor doutor. Asseguro-lhe que o ci­garro não envolve nenhum compromisso. Nem está envenenado...

— Obrigado — recusou novamente Ramón.

— Ora bem — disse o capitão, sem insistir mais e espalmando a mão, de dedos exorbitantemente cabeludos, sobre aquela rima de papéis a que se chamava um processo—, o senhor doutor é, fora de dúvida, um bom médico, um excelente médico. E uma pessoa inteligente. Podia ganhar linda­mente a sua vida. Em vez disso... está aqui. Por causa da mania da política! Ai, senhor doutor, senhor doutor!...

E voltou a sorrir. Mas agora era um sorriso bem diferente. Era um ricto dulceroso, apologético, aprendido de cor e que pretendia ser indulgente, compreensivo, bom conselheiro, um atilado sorriso de amigo, mais velho e mais sabido, pronto a dar a mão ao inconsciente transviado, que pecara con­tra as conveniências, contra a ordem fixa, contra as boas normas vigentes, e estava ainda a tempo de resgatar-se com um pouco de senso comum...

Ramón baixou a cara. Sempre o constrangera c o perturbara, mais do que o ódio declarado, mais do que a violência explosiva, aquela nauseante tentativa de sedução da mediocridade omnipo­tente. Havia promessas múltiplas naquele sorriso: a promessa de o deixarem em paz, à manjedoura da vida.

— Porque é que o senhor doutor se mete em política?...

Ia já a mover os lábios, mas arrependeu-sc. Não respondeu. Para quê agravar ainda a sua situação?! Apetecia dizer-ihes, contar-lhes, explicar-lhes, fa-zer-lhes compreender, que não tinha, que nunca tivera vocação de político, que era apenas médico e homem, um homem como os mais, nem melhor nem pior do que os outros. Que toda a sua vida, à margem da medicina, gostara de música, e de crian­ças, e das mulheres, destas talvez demasiado... Que fora frívolo, alegre, desambicíoso, como tanta gen­te, capaz de dar consultas de graça, capaz também de ganhar dinheiro, o bastante para si, pelo menos; e que não deitara raízes em nenhum lado. Mas, a pouco e pouco, tudo aquilo que o envolvia — as injustiças, o espectáculo baço da fome enganada, do povo agravado, escarnecido, boçalmente isolado do mundo, paternalmente colocado «no seu devido lugar», tudo isso e a sinuosa opressão, a venalidade dos tribunos oficiais, a ofensa constante da sua verborreia à inteligência amordaçada dos que não lhes aceitavam a lei — tudo isso o indignara, o enchera dia a dia de fastio, de um colérico fastio, e o levara enfim a endireitar a espinha, ele, como por acaso, ele entre outros, cândido cidadão; sim, cândido e consciente dessa candura, ele que nunca fora nem seria político, alheio de nascença, alér­gico, a combinações e arranjos, ao maquiavelismo e ao realismo talvez inevitáveis, talvez inerentes a toda a acção política...

Mas para que dizer-lhe tudo isso, àquele sinistro manipanso, que o não podia entender? Depois... exceder-se-ia. Sempre o mesmo lhe acontecia. Não era homem para se conter, se outro desse batalha e lhe opusesse os argumentos, as admoestações tradicionais, se o convidasse à prudência, ao bar-riguismo encasacado, digno e lucrativo, à impas­sibilidade matreira. Não! Até a tolerância já começara a esfarrapar-se-lhe ante essa irónica, en­joada, impassibilidade da sociedade prostituída com a qual de uma vez para sempre quisera rom­per.

— Ora o senhor doutor podia viver descansada­mente. Sim, senhor. Tinha todo o estofo para ser «alguém». E afinal preferiu isto!... Ai, meu Deus!... Meu Deus!... Enfim (o capitão escandia agora pedagogicamente, as sílabas, com uma autori­dade benigna e satisfeita), enfim, sempre é tempo de arrepiar caminho, quando o juízo vem... Sabe, senhor doutor, basta uma... uma pequenina re-tractação e arranja-se-lhe um indulto. E, pronto: o senhor volta em paz para a sua terra, tem lá a sua clientela, um belo futuro em perspectiva. Um nome que vale dinheiro. E sobretudo... a sua li­berdade. E a liberdade sabe bem...

— A quem o diz, senhor capitão! £ mesmo por causa dela que aqui estou — respondeu Ramón, semicerrando os olhos, avermelhados pelas longas e dolorosas vigílias, porém, de súbito, como reju­venescidos, brilhantes de desafio. E já no seu espí­rito em movimento aquela moderada resposta, am­bígua, lacónica, amparada ao sarcasmo do sorriso, se prolongava soltamente. Ah, que pena ter de calar todo o resto, o mais, quanto mais, que teria a dizer-lhe, as palavras candentes que lhe escarraria em chusma na face obtusa e mandona: .«A liber­dade, a liberdade, essa lâmina de dois gumes!... Pois é mesmo por causa dela que aqui estou. Sim, por causa dela. Por causa da liberdade que o se­nhor e os seus amigos nos recusam... mas de que se gozam e abusam.» Noutro tempo — lembrou-se Ramón — teria ele próprio, sim, ele próprio, achado de um supremo mau gosto, em qualquer altura que fosse, uma tirada daquele jaez, expulsa ou engolida, assim apaixonada, primária. Assim demagógica e empolada. Bem verdade que sim. E agora essas mesmas frases altíssonas, que outrora houveram merecido o sereno desdém do seu escru­puloso sentido da elegância, vinham-lhe agora lado fundo (como era possível?) carregadas de auten­ticidade e tremores, eram agora fúria da sua fúria, pedras de arremesso que lhe ficavam a arder nas pobres mãos enclavinhadas, bocados de chama, de carne e de sangue, tolhidos no cárcere da sua gar­ganta de réu, de escravo rebelde e peado...

O capitão olhava-o fixamente, com os seus frios olhos de peixe, tristes e inexpressivos, e, enco­lhendo os ombros, no ar conformado de quem inspira um hausto longo de paciência, condescen­deu em replicar, ainda persuasivo:

— Essa liberdade não existe, senhor doutor, pelo menos como o senhor a quer e a concebe: na vida real, é sinónimo de desordem, de atentados à bom­ba, de insultos e vociferações, de arruaças e es­cândalos... Mas, deixemos isso (a voz do capitão tornou-se então seca, precisa, rigorosa). Chamei-o aqui, meu caro senhor, para lhe oferecer, muito a sério, uma possibilidade de nos deixar, de voltar dentro cm breve para a sua casa. Não, não faça essa cara. Não lhe peço nenhuma infâmia. Ape­nas... que se mostre... pesaroso. Que se desdiga, é claro, não há outra palavra. (Ramón a obsewá-lo apertando os olhos, sempre a sorrirum sorriso furta-cores, em que desfilavam, fugazes, como em áçua verde, sob o sol dos pauis, uma obliqua zom­baria, e a desconfiança, a suspeita, o nojo, a re­volta prestes a deflagrar, mas contidas, todas elas, essas insofridas expressões, pela prudência, pela eterna, pela necessária, pela mesquinha prudência elementar.) Ninguém o obriga, senhor doutor — esteja descansado—, ninguém o obriga a trair ou a denunciar seja quem for. Não dramatizemos. Só isto: uma assinaturazinha. uma assinatura absurda que o senhor nunca devia ter dado e que vai agora enjeitar. Caia em si, senhor. Nada mais. Note que... eu não lhe estou falando no meu interesse. Tenho alguma coisa a ver com isso?! Que o se­nhor fique, que o senhor parta, a mim, com­preende, não me aquece nem me arrefece...

— Pois claro, senhor capitão, mas não se fatigue. Eu prefiro continuar onde estou a ter de renegar--me. É o meu direito, não acha?

Foi então que o capitão se levantou. Tinha mais, bastante mais, de um metro e oitenta. E em cima

desse corpanzil a sua cabecinha grotesca, azeda e imbele de doente dos intestinos, forcejava por acompanhar a súbita excitação, a excitação feroz, ofegante, que lhe sacudia os peitos adiposos.

— Como você quiser! — replicou, dobrando-se sobre a secretária, aproximando de Ramón um bafo espesso de hepático, e os seus olhitos álgidos, agora intimidativos. — Mas não conte mais comi­go. Hã! Rebente para aí. Estoire! Rebente como um cão, ao abandono. Coma os seus ideais, lave-se com os seus ideais. Que lhe prestem! Só tem que se queixar de si.

— Ainda não me queixei... de nada — contestou Ramón, num tom de calma acintosa, provocante. Sentia-se atordoado, quase a desmaiar, com aquele espantalho enorme erguido diante dele, como se fosse a todo o momento esmagá-lo. Mas não re­cuava nem um milímetro o rosto. Só por diante dos olhos desabituados da luz lhe passavam às vezes névoas inoportunas, quando outro gesti­culava largamente. E um quebranto desleal amo-lancava-lhe as pernas. Miséria de corpo! Pressen-tia-o perto de ceder. E se lhe desse ali algum chilique, um faniquito de donzela, na frente da­quele carrasco burocrático?! Que «pratinho», que vitória para ele, para todos os sicários de antecâ­mara que ali haviam de acudir!

Foi esse mesmo receio de se ir abaixo, de su­cumbir, que o espevitou ainda, que o excitou bruscamente, até à exaltação. Tinha — agora sim. agora ou nunca — de sacar do seu íntimo todas as injúrias, todas as dores amassadas, todas as revoltas sufocadas, para delas fazer arma de arre­messo e de defesa. De defesa do seu brio, seu último bem, ali exposto, senão à demissão, à dissolução, pelo menos a um consentimento tácito, a uma conivente fraqueza de águas mornas...

— Se o senhor doutor não c um político, e eu quero crer que não é — recomeçou o capitão, a tentar de novo insinuar-se—, se não tem no corpo o vício da política, não se meta mais em sarilhos: viva a sua vida! E, para começar, pense, pense um bocadinho, desculpe que lhe fale assim: tenha juízo. Assine esta folha, que diabo! (c, abrindo uma das gavetas superiores da secretária, de lá retirou meticulosamente um papel). Veja, leia, leia com atenção: não contém nenhuma ignomínia, ninguém lhe pede que se abandalhe. Simples­mente... Não? Não quer? Bom! Não teimo mais. Mas... afinal, seu cara de... Porque é que não me responde, ao menos, como gente? Porque é que não se explica, caramba? Parece que me des­denha!...

— E desdenho, profundamente, a si e a todos os da sua laia — disse Ramón, concentradamente, aplicadamente, para não atropelar as palavras, e todo o corpo lhe tremia, como num ataque de fe­bre, tinha os olhos a arderem, as unhas cravadas nas palmas das mãos. — Nem é desdém — prosse­guiu, sob o olhar fito do capitão, um olhar mais de espanto que de rancor, de espanto e de aguardo, como o do caçador à espreita que a presa se lhe revele por inteiro. — Nem é desdém, é ódio, é ódio e desprezo. Sobretudo desprezo. O ódio pa-ga-se com ódio. Mas o desprezo é só nosso. Vocês têm a força, nós o desprezo: ê essa a nossa força.

O capitão pôs-se a rir. e era a princípio um riso forçado, sujo, achavascado, um riso disfarçado de homem ofendido, uma espécie de baba sonora, de vómito cascalhante, com rangidos de garras. Mas depois foi só riso, um grande riso liberto a estre-mecer-lhe, a altear-lhe, a barriga fardada, riso es­pasmódico de vitória, de troça, ante a absurda pirueta de um bobo, que dá início à farsa.

E de repente ficou sério, os olhos graves, duros, pequeninos, imóveis. Tocou a campainha, um botão escuro na parede, por trás da cadeira gira­tória.

Apareceu um guarda, de rosto atento.

— Levem-no para a sala B e fechem-no lá — ordenou o capitão, que logo mergulhou a atenção (seria aquela calma só aparente, calma aparente, aparente, aparente?...) num maço de documentos, rolando, entre o polegar e o indicador da mão direita, um lápis aguçado, apontado para os papéis.

Ramón, completamente oco, esvaziado abrupta­mente de toda a cólera, de toda a paixão, e que­rendo deter, aprisionar ainda a sua razão, que o abandonava, que o desertava, deixou-se levar, cambaleante, a boca ainda depreciadora, altiva, num gesto derradeiro de resistência. Era o mo­mento pior, aquele que sempre se seguia às suas explosões de furor. Quando se lhe derramava assim a energia, precisava de algum tempo para a recuperar, para se ressarcir. Agora fugiam-lhe, para mais, as defesas físicas abaladas. À ressaca do excesso nervoso juntava-se a abulia da sua depau­peração.

Perguntava a si próprio, mais uma vez, se não fora longe de mais, se tudo aquilo, na verdade, valia a pena...

Quando a porta se fechou e ele ficou só, olhou desconfiadamente o quarto nu, iluminado por uma lucerna, e sem nada de especial, sem ne­nhuma sugestão de câmara de torturas.

Passado um momento, como as veias das pernas, inchadas, lhe doessem, sentou-se no chão, encos­tado à parede. Sentia avizinhar-se dele a onda clara, terrivelmente lúcida e pungente, do niilis­mo absoluto, onda que tantas vezes o visitava e o submergia momentaneamente. Haveria sempre homens como o «senhor capitão». De nada servia querer mudar o mundo. Haveria sempre homens como o senhor capitão. Surgiam de todos os cantos e mesmo dos campos contrários, nos momentos propícios, pacatos algozes de trazer por casa, ser­ventuários das tiranias, enchendo os bolsos da alma — e os de fazenda — de citações, de cobres ou de louvores, sorvendo o vinho apimentado do mando. E o pior é que talvez a existência deles, e o papel que desempenhavam, estivessem dentro das leis naturais da vida. como os flagelos perió­dicos— as pestes, as gripes, as guerras. De que valia um pobre homem como ele, isolado, e nem sequer muito certo de si, elevar assim a voz àquele ponto, sem auditório tão-sòmeme, ridículo como Dom Quixote... e abrir os braços, já tão descar­nados, ao livre rubor de uma improvável auro­ra?... Ah! não... Era preciso ser louco, como ele o era.

Abriu-sc a porta, de manso. Pela abertura, asso-mou-se o rosto de um guarda. Ramón tinha ideia de que já o vira, mas confundia-os uns com os outros. Ficou à espera.

O homem decidiu-se:

—Venho dizer-lhe... Mandaram-me... Manda-ram-me dizer-lhe que um dos seus amigos, aqueles dois, você sabe... Bem... morreu no hospital.

— Qual deles? — perguntou Ramón.

— O mais novo, o mais alto.

— Quando foi?

— Hoje mesmo.

Como Ramón não tornasse a interrogá-lo, o guarda retirou-se, canhestro, cerrando a porta devagar, com um respeito ancestral, instintivo, pela morte, e por aquela dor escura, silenciosa, fechada.

Mas Ramón ouviu-o comentar, do lado de fora, com um colega:

— Esticou o pernil às três da tarde. Dizem eme tinha os pulmões desfeitos, que já nem respirava.

Sempre era um acontecimento, ali, uma morte. «Esticou o perniln, eis o epitáfio de Pepe — veri­ficou Ramón, mordendo os beiços, apertando os dentes até sentir na boca um longo arrepio dolo­roso e frio. O epitáfio do Pepe! De Pepe que poderia ter sido tudo: artista, «dandy», marido e pai, actor, herói, orador... Pepe que tinha nas veias a paixão do mundo, a ânsia de novos céus, de uma pureza mais azul, de gestos mais cordiais, de sorrisos mais inteiros... Pobre Pepe que andara a brincar na vida até então, mesmo ao lado dele e de Cristóbal... e que nunca soubera, que nunca pudera odiar ninguém.

Ah! Se ele tivesse ali na frente o capitão, sozi­nhos os dois, clausurados, enfelpados, naquele quarto, mesmo debilitado como estava, mesmo anémico e com a vista turva e a garganta cheia de lágrimas, que lhe encheriam os olhos de sangue, se pudessem subir, mesmo com aquele sibilo de morte nos ouvidos e com os joelhos moídos, roídos pela humidade, ah! capitão, capitão, ele, Ramón, o trincaria vivo, ele lhe faria pagar—e como.'.— o que esse mastodonte ignaro e obeso roubara ao mundo e ninguém podia já devolver-lhe: o olhar de Pepe, tão infantil e cheio de esperança, até quando nos lábios se lhe franziam chistes, que fingiam não acreditar em nada. A luz desse olhar, extinta para sempre...

«Mesmo que depois destes venham outros iguais — pensou Ramón, trémulo (e era quase um jura­mento que a si próprio fazia)—, mesmo que assim seja, mesmo que assim seja... É preciso, é preciso que alguém proteste!»

Levantou-se, de repelão, e começou a bater com os punhos na parede, como tresloucado, até que, exausto, soluçante, deixou cair os braços. E de uma das mãos escoriadas um pingo de sangue es­correu, caiu no chão.

Pela segunda vez, abriu-se a porta. Apareceu o capitão, hirto, aprumado, a cabeça alta, minús­cula e terrosa, entre os ombros largos, o pescoço afogado no colarinho teso, o peito rotundo, abo­toado, cinturado de couro o estômago em balão. Trazia consigo, e acariciava maquinalmente com os dedos, um cavalo-marinho, grosso e flexível. Nem se lhe via a boca: apenas um corte vingativo, determinado, na carantonha insípida, parada. Atrás dele vinham dois guardas.

— Então desprezas-me, não é? — perguntou ele, com uma inquietante severidade, afastando as per­nas, solidamente assentes os tacões das botas no meio da sala.

Ramón avançou dois passos e cuspíu-lhe na boca.

A primeira vergastada atingiu-o no rosto, de través, e enfureceu-o tanto que ele se lançou para a frente, cego, inflamado, ansiando ferir, rasgar, esmurrar todas as carnes, todos os corpos que en­contrasse. Mas só o vácuo as suas mãos ávidas, desesperadas, palparam, encontraram. E um se­gundo golpe ardente lhe zebrou a face, do nariz até à orelha. Caiu-lhe, em seguida, sobre a cabeça uma chuva sólida, dura, vermelha. Uma chuva sonora, terrível, de chibatadas estalejantes. Sobre a cabeça a desfazer-se-lhe. Com certeza a ulcerar-se, a desfazer-se. Como era possível resistir? Resistir ainda! Uivava. Dentro em breve teria os miolos a mostra. E então, então, mais nada. Então, a paz do nada. Bem-vinda essa paz final, como uma suave pomada branca para aquele sofrimento animal. Branca, branca... Mas, 'como doía, entretanto! Caramba! Atordoado, dobrou-se, encolheu-se. ui­vando como um bicho sem pudor, tapou os olhos com as mãos, que pareciam agora todas de osso, prestes a partir-se sob as secas zorragadas. Depois o cavalo-marinho atingiu-o no ventre, por várias vezes, e nas costas, nas pernas — eram quase cho­ques eléctricos—, até que Ramón, esvaído, ani­quilado, caiu. A barriga em chamas; uma dor pro­funda nos nervos, correndo-lhe o corpo todo, em sucessivos estremeções. Mas as pancadas não cessa­vam. E ele ainda não perdia acordo. Até que por fim quase deixaram de lhe fazer mal os golpes que ritmadamente lhe rasgavam os flancos. Já não se sentia gente, apenas um centro de brasa, algu­res nele, um cristal de rebeldia ainda.

A morte, agora, pouco lhe importava. O corpo, fustigado sem parança, habituara-se à dor. No meio daquele chavascal de sangue, que lhe espir­rava da própria pele e lhe untava as mãos e a testa, um insuperável orgulho, uma flagrante sa­tisfação lhe corria, íntima, candente, inalienável, no fundo do peito: não tinha medo. Enfim o sa­bia: não tinha medo. Vencera o duvidoso duelo consigo. Nada podiam já contra ele!